segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Lembranças

  
15 minutos, mas parecem 3 horas, ou até três dias. 

Sabe quando você simplesmente perde a noção do tempo e parece que ele não passa? Ou quando você emerge em pensamentos e o tempo parece parar para poder acompanha-los? Eu acho que isso esta acontecendo comigo hoje .

    “Hoje você acordou com a pulga atrás da orelha”  ela me diria “Você as vezes vive mais no outro mundo do que nesse” .

Eu realmente costumo viajar em pensamentos , sinto que quando estou mal , viajo para um outro mundo em minha mente. Um mundo do qual eu posso fazer tudo o que tenho vontade, um onde consigo fazer a frustração não existir. Nunca digo isso abertamente a ninguém, porque dá uma sensação de fuga, de falta de coragem da realidade, mas ela de alguma forma sabia, e eu não me sentia um fraco perto dela.

Levantei da cama pela manhã e cheguei até o banheiro. Só nessa caminhada minha mente foi para mais de mil lugares diferentes. Sabe aquela sensação de que parece que você revive tudo em poucos segundos? Flashes, eu acho.

Lembro da primeira vez que nos conhecemos. Um dia normal na concepção de muitos, só não na nossa, sempre é assim nessas histórias.

Fui ao mercado para fazer as compras semanais aqui de casa, o que geralmente se resume a enlatados e coisas fáceis de esquentar, já que não sou um verdadeiro gourmet na cozinha. Peguei uma fila enorme no caixa, aquelas das quais você pensa duas vezes em devolver tudo e voltar outra hora, mas fui persistente em atura-la por um tempo, senão minha janta seria baseada em pão velho com qualquer meleca grudada na porta da minha geladeira.

No corredor do caixa vi em uma prateleira o “ultimo” livro de Shopie Kinsella. Confesso que nem me recordo o nome já que geralmente seus livros tem nomes comuns até demais, ou nome de comida. Peguei um e pensei em presentear minha mãe com esse. Dica: se você quer impressionar uma mulher, dê a ela esses tipos de livros, romances bobos e açucarados fazem elas se derreterem por você. A única coisa que precisa esconder, de certa forma com uma força descomunal, é o que você realmente pensa com relação a essas histórias.

Não demorou muito até chegar a minha vez no caixa e estava pronto para correr depois de pagar para não perder o jogo na TV, porém, a ironia sempre acontece nessas horas, o caixa não tinha troco, ou seja, luzinha vermelha ligada até alguma pessoa do balcão escondido provavelmente do outro lado do mercado, traga dinheiro para poder ser trocado.

Nesse tempo uma mulher que se encontrava atrás de mim na fila me olhou e perguntou intrigada “Você tem mesmo coragem de ler esse livro ?”. Olhei para ela e, não pretendendo dar muitas explicações, disse que era uma leitura descontraída, nada muito pesado ou que fizesse você pensar muito pra ler. “Você não precisa pensar muito pra ler Sthepen Spignesi também e eu te garanto que é bem melhor que esses romances de mulheres melosas , toma pega esse aqui” um livro pequeno com uma figura de uma menina na capa, mostrando seu rosto através de uma porta entreaberta “Dia de Eutanásia”. Interessante você me recomendar isso, disse a ela, não achava que vocês gostavam de histórias com um certo tom “pesado” talvez.

  “Você é que talvez não conheça as mulheres certas”

Realmente isso foi uma atitude que me impressionou. Acabei comprando os dois livros e antes de sair. Dei o da Sophie Kinsella a ela e disse que ela lesse e me dissesse se a opinião dela continuaria a mesma depois de ler. Algumas pessoas sempre caem em contradição depois, adoro causar isso simplesmente pelo conforto de vê-las, mudarem suas opiniões por vezes sem nem notar. Claro que nesse tempo trocamos telefones para ela me dizer depois o que achava.

O que aconteceu depois foi que realmente o livro que ela me recomendou era bom, só o final que de certa forma não foi um primor, mas o caminho que ele leva vale bem a pena as horas perdidas de leitura. E ela realmente detestou o outro livro, de certa forma gostei disso.

Alguns encontros e conversas depois e começamos a namorar, e com o passar do tempo a dividirmos o mesmo teto. Mas isso não vem totalmente ao caso agora, a única coisa que consegui lembrar com clareza absoluta no caminho ao banheiro foi desse momento, da primeira vez que nos conhecemos.

Não dividíamos a mesma escova, já que eu achava isso uma coisa muito pessoal. Ela costumava me chamar de “excluído”  da sociedade por não gostar de interagir com os outros normalmente, eu perguntava "por que isso, só por causa da questão da escova?"  E ela retrucava “São nos pequenos detalhes que percebemos realmente como as pessoas são”. Sempre com aquele olhar malicioso e irresistível que fez eu me encantar por ela.

Não sei ao certo quanto tempo fiquei escovando os dentes ou dando uma mijada. Minha mente ficou em branco nesse momento, aquele tempo no qual não parece estarmos em nosso corpo, só agindo automaticamente.

Saí e fui até a cozinha, do mesmo jeito que a havia deixado na noite anterior. Alguma geléia viscosa, pingando do pano da mesa no chão, a pia suja com pratos e copos, talvez até alguns animais mortos por tanta sujeira. Devem ter pego alguma infecção nos talheres podres.

Na mesa da cozinha temos um enorme cisne de porcelana no meio. Compramos em conjunto, cada um ajudando a pagar, foi uma certa excentricidade o valor que pagamos, mas confesso que com relação a isso eu não me importava .

Gostávamos de ir a um parque não muito longe de casa, sentávamos na beira do gramado, as vezes com alguma cesta de piquenique, e observávamos as famílias de cisnes passeando pelo lago.

A mãe na frente, sendo acompanhada pelos filhotes logo atrás, andando em fila e em forma de escadinha. Era engraçado ver.

 “Eles parecem tão calmos, andam sem preocupação como se nada os pudesse parar, o mundo deles parece feliz, sabe por que ?”  Não.  “Porque eles não o complicam”. Não entendi direito . “Eles tem o seu modo de viver, se você observar bem todos eles sabem o que fazer, seguem seus pais , brincam na água a mãe lhes da o que comer quando não podem se alimentar, de certa forma eles agem como nós na infância, só que eles pulam as fases seguintes, eles não complicam as próprias vidas como todos nós fazemos.”

Eles não tem uma mente tão evoluída como a nossa pra sentirem tudo o que sentimos e entenderem tudo o que entendemos. “Isso é talvez uma dádiva que eles tenham. Nós podemos ter uma evolução maior mas, por muitas vezes agimos mais idiota do que eles, seres não tão evoluídos. Acho que esse talvez seja o nosso problema, pensamos demais nas coisas, ou em alguns casos de menos”.

Isso realmente me fez pensar.  Aquele lago verde trás uma enorme sensação de calma e se pensarmos numa família de cisnes, ou aves semelhantes, geralmente é nessa imagem que os vemos, um lago, aquela sensação de paz. Se pensarmos em leões também os vemos em uma imagem que os liga a savana, matas altas, secas. Cada animal tem o seu ambiente natural. Mas se você nos observar, os humanos, os “seres evoluídos”, estamos desde mansões em lugares luxuosos, belas praias, até em cima de um morro, em uma casa de barro, correndo riscos de vida só por estarem vivos. Realmente nós não somos os mais inteligentes nessa equação.

Por isso decidi por esse cisne aqui, para lembrarmos que mesmo na pior situação que estivermos, sempre podemos manter a calma, porque no fundo não são os outros ou alguma força de fora que complica nossa vida, somos nós mesmos.

Pego um pacote de bolacha aberto no armário e como algumas, acompanhadas de um belo copo de água da torneira. Estou comendo só por comer agora .

Volto ao quarto e vou até a nossa cômoda onde tem uma gaveta com um pedaço enorme de papel colado escrito “recordações”.

Tudo o que fazíamos guardávamos aqui para relembrarmos sempre. Desde nossas fotos em viagens, cartas escritas um ao outro nos momentos que não podíamos estar juntos, até nossos ingressos pra cinemas e festas.

Ergo as minhas mãos e seguro as duas alças da gaveta. Tudo isso em um tempo que pareceu maior que os anteriores. Se temos a sensação de que o tempo simplesmente para, essa foi uma dessas sensações, só que numa escala elevada a dez .

Sinto uma pequena vertigem de simplesmente estar em pé agora. Minha mente viaja para vários lugares e eu me lembro.

Depois de algumas semanas muito ruins, eu a recomendei irmos ao médico. Depois de alguns exames o médico vai te receitar algo e você vai ficar bem logo, você vai ver. Aí faremos aquela viagem pra casa de campo dos seus pais e vou faze-la ser inesquecível para nós.

Alguns exames, e depois de uma longa conversa com o médico, descobrimos qual era o seu problema, câncer de pulmão em estado avançado.

Um baque surdo, do qual sentimos um peso enorme dentro de nós e ficamos sem reação. Ela chorou muito  aquele dia e tudo que podia fazer era reconforta-la. Não podia me permitir mostrar dor perto dela , ela já tinha o suficiente pra muitas pessoas. Mas nas noites seguintes, enquanto ela dormia, eu ia ao banheiro e deixava as lágrimas correrem por algum tempo. Isso não podia estar acontecendo. Por que?

Minha mente retorna ao ponto que estou, minhas mãos segurando firmemente as alças da cômoda enquanto a vertigem vai passando aos poucos. Porém os olhos começam a lacrimejar, perco novamente o equilíbrio e me ajoelho no chão. "Por que?"

Algumas semanas depois ela não resistiu e acabou falecendo. Era uma coisa da qual ela estava se preparando desde o diagnóstico do médico. Ela havia escondido de mim que os sintomas eram muito piores do que parecia. Suas perdas de fôlego repentinas e os inchaços no rosto me preocupavam, mas ela sempre dizia que era alguma alergia ou cansaço. Ela sempre passava tempo demais no banheiro as vezes. Claro que não era uma coisa que me preocupava.  Mas provavelmente nesses momentos ela devia estar escarrando sangue. Lembro que muitas vezes via papéis manchados de vermelho no banheiro, muito mais do que um simples descuido na menstruação mensal.

A primeira sensação que tive foi de negação. Aquilo não podia estar acontecendo, provavelmente era só um sonho ruim daqueles que parecem muito reais e você espera o momento de acordar e ver que tudo era só uma ilusão. Que logo ela estaria a sua cama com o café da manhã, naquele típico clichê de comercial de margarina.

Depois a sensação de um baque vazio, a sensação de estar preso em algum lugar e querer sair a todo custo, mas nada que você faça te tira dali.

A terceira sensação foi de ódio. Como Deus podia permitir que uma pessoa tão boa e especial fosse desse jeito enquanto outras, que merecem destino muito pior, estão por aí se gabando da boa vida que tem?  Isso foi o sentimento que me levou por muito tempo. Porém, a noite enquanto me revirava na cama sozinho, sem sono, sem vontade de nada ela vinha e conversava comigo. Talvez naquele mundo imaginário no qual costumo viajar para fugir das frustrações da vida.

  “Nosso maior problema é as vezes pensar demais nas coisas e complicamos o que pode ser muito simples”

O que seria simples nisso? Te perder e aceitar como uma coisa normal? Esquecer tudo o que passamos juntos e seguir adiante como se nada tivesse acontecido?

  “Simples se afogar somente nos piores sentimentos e com o tempo esquecer o que foi bom, o tempo que tivemos juntos. Foi eterno? Não! Foi importante e especial? Muito! Você complica isso se martirizando só pela sensação de perda, mas não houve ganho nisso? Nada de bom que você possa erguer a cabeça e seguir adiante com felicidade? O pouco tempo que ficamos juntos será eterno em algum lugar, em algum “tempo”. Sua vida não acabou, a minha também não, ela só vai acabar quando você desistir de tudo e se deixar levar pelo sentimento eterno de solidão que você pode carregar agora. Esse sempre é o caminho mais fácil. Mas eu sei que você pode superar isso, porque eu posso não estar em presença, mas estarei sempre em espírito com você”

A dor é mortalmente horrível. Todos os dias tento me agarrar a essas palavras e me erguer, mas Deus ... é tão difícil. Juro que tento, a todo o instante. Sei que ela esta ao meu lado agora e me ajudando a superar isso. Sei que algum dia vou conseguir olhar pra trás e ver a felicidade que tivemos acima de todos os sofrimentos que passamos.

Aquela gaveta vai continuar intacta, sem nem ser aberta por um bom tempo, não vai ser agora que eu tomarei coragem em abri-la e retomar essas lembranças com coragem e alívio. Talvez precise de mais alguns anos. Mas juro que vou estar sempre tentando. E sei que um dia conseguirei superar isso, porque sei que você vai estar sempre comigo me protegendo e me dando confiança para seguir em frente.

  Obrigado por tudo!


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